À memória da minha mãe
(1918 - 1998)
Não é justo, mãe,
que tenhas bebido tanto
o fel do sofrimento,
embora eu saiba que é
um bem escasso, a justiça,
como escasso é o pão
para tantos.
Olho-te
agora que o pulsar da vida
te deixou,
olho-te o rosto devastado
pelo sofrimento,
lívido e frio,
e descubro nele, enfim,
alguma paz.
Descansa, mãe.
Só tenho pena
de que já não possas ver
no quintal
a ameixoeira a florir.
Jorge Cunha
Era muitas vezes assim- Está feliz?que ao encontrarmo-nos na sala de professores o Monteiro me interpelavanão bem interpelar, vim a perceber depois, mais cumprimentar, como se dissesse- Está bom?ou- Tem passado bem?de modo que da primeira vez que o Monteiro- Está feliz?deve ter-se notado na minha cara uma expressão de surpresanão indignação nem sequer irritação contida, apenas surpresaporque o Monteiro, com aquela delicadeza que sempre me tocou- Não lhe estou a perguntar se é feliz, mas se está felizo Monteiro, claro, seria incapaz de querer intrometer-se naquela parte de mim que procuro sempre resguardar da devassa.Uns quantos anos mais velho que eudez? doze?chegou à escola muito mais tarde, mas em breve se estabeleceu entre nós uma certa proximidade afectiva, uma certa confiança, às vezes mesmo cumplicidade como quando se aprimorava em patranhas inofensivas- Então a Idalete não sabia que o Jorge e eu andámos juntos no seminário?o Monteiro sempre sério, olhava-se-lhe para a cara e nada, nenhum indício que alimentasse a dúvida- Pois é, podíamos estar bem hoje, sermos bispos ou coisa no género, se não tivéssemos sido expulsos, e a culpa foi aqui do Jorgeeu com dificuldade em não denunciar a patranha, tentando um ar contrito que convencesse, arriscando apenas um- A culpa não foi só minha, se virmos bem as coisas.Pois apesar dessa cordialidade o Monteiro tratou-me sempre por vocêtrata-me sempre por você, se bem que agora nos vejamos raramenteao que eu correspondiacorrespondoevidentemente do mesmo modo. Não sei porquê sempre associei isso à delicadeza da sua índole, como se o tratar-me por tu fosse como forçar grosseiramente uma porta.Diante de mim, na televisão que olho esporadicamente, um daqueles programas de entretenimento meiomeio?idiotas, em que gente que acedeu à glória suprema de uns instantes na televisão se desfaz em cacarejos estridentes, se contorce de animação numa felicidade patetaestão felizes?e os apresentadoresprofissionais do charmeos apresentadorescampeões da boa disposição- E agora, senhoras e senhoressempre tão jovens, tão alegres, tão comunicativos, tãotão postiços, tão cheios de enjoativos lugares comuns- Ó Tânia, se o seu namorado está a ouvirrisos contagiantes, um braço a pousar no ombro- Ó Tânia, o seu namorado não é ciumento, pois não?a orquestra num esforço de decibéis, a concorrente a esganiçar-se com brio, a curvar-se no fim para os aplausosêxtase ou alívio?os familiares e amigos em saltos frenéticos na plateia, braços no ar, apoteoses de palmasalguém das suas relações próximas está a entrar na glória- E agora, tan-tan-tan-tan, vamos ouvir a opiniãoo júri mostra-se amável, benevolentenão está ali para estragar a festa, não é?deixa palavras de encorajamentomais palmas, mais gritos, às vezes lágrimas de comoção que um zoom desenfreado da câmara se apressa a colher- Na próxima semana cá estaremos à mesma horasorrisos brilhantes de dentes impecáveis, um- Ciaoprolongado, modulado, as bocas rasgadas de orelha a orelhasempre tão jovens, tão alegresestão felizes?tão comunicativosestão felizes?tão simpáticosestão felizes?Se calhar estão. O que é que você acha, Monteiro?Jorge Cunha
Todos estamos aqui nesta condição.
E o futuro nada mudará.
Jorge Cunha