segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Poesia (5) Mãe

À memória da minha mãe
(1918 - 1998)

Não é justo, mãe,
que tenhas bebido tanto
o fel do sofrimento,
embora eu saiba que é
um bem escasso, a justiça,
como escasso é o pão
para tantos.
Olho-te
agora que o pulsar da vida
te deixou,
olho-te o rosto devastado
pelo sofrimento,
lívido e frio,
e descubro nele, enfim,
alguma paz.

Descansa, mãe.
Só tenho pena
de que já não possas ver
no quintal
a ameixoeira a florir.

Jorge Cunha

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Crónica (4) O que é que você acha, Monteiro?

Era muitas vezes assim
- Está feliz?
que ao encontrarmo-nos na sala de professores o Monteiro me interpelava
não bem interpelar, vim a perceber depois, mais cumprimentar, como se dissesse
- Está bom?
ou
- Tem passado bem?
de modo que da primeira vez que o Monteiro
- Está feliz?
deve ter-se notado na minha cara uma expressão de surpresa
não indignação nem sequer irritação contida, apenas surpresa
porque o Monteiro, com aquela delicadeza que sempre me tocou
- Não lhe estou a perguntar se é feliz, mas se está feliz
o Monteiro, claro, seria incapaz de querer intrometer-se naquela parte de mim que procuro sempre resguardar da devassa.
Uns quantos anos mais velho que eu
dez? doze?
chegou à escola muito mais tarde, mas em breve se estabeleceu entre nós uma certa proximidade afectiva, uma certa confiança, às vezes mesmo cumplicidade como quando se aprimorava em patranhas inofensivas
- Então a Idalete não sabia que o Jorge e eu andámos juntos no seminário?
o Monteiro sempre sério, olhava-se-lhe para a cara e nada, nenhum indício que alimentasse a dúvida
- Pois é, podíamos estar bem hoje, sermos bispos ou coisa no género, se não tivéssemos sido expulsos, e a culpa foi aqui do Jorge
eu com dificuldade em não denunciar a patranha, tentando um ar contrito que convencesse, arriscando apenas um
- A culpa não foi só minha, se virmos bem as coisas.
Pois apesar dessa cordialidade o Monteiro tratou-me sempre por você
trata-me sempre por você, se bem que agora nos vejamos raramente
ao que eu correspondia
correspondo
evidentemente do mesmo modo. Não sei porquê sempre associei isso à delicadeza da sua índole, como se o tratar-me por tu fosse como forçar grosseiramente uma porta.
Diante de mim, na televisão que olho esporadicamente, um daqueles programas de entretenimento meio
meio?
idiotas, em que gente que acedeu à glória suprema de uns instantes na televisão se desfaz em cacarejos estridentes, se contorce de animação numa felicidade pateta
estão felizes?
e os apresentadores
profissionais do charme
os apresentadores
campeões da boa disposição
- E agora, senhoras e senhores
sempre tão jovens, tão alegres, tão comunicativos, tão
tão postiços, tão cheios de enjoativos lugares comuns
- Ó Tânia, se o seu namorado está a ouvir
risos contagiantes, um braço a pousar no ombro
- Ó Tânia, o seu namorado não é ciumento, pois não?
a orquestra num esforço de decibéis, a concorrente a esganiçar-se com brio, a curvar-se no fim para os aplausos
êxtase ou alívio?
os familiares e amigos em saltos frenéticos na plateia, braços no ar, apoteoses de palmas
alguém das suas relações próximas está a entrar na glória
- E agora, tan-tan-tan-tan, vamos ouvir a opinião
o júri mostra-se amável, benevolente
não está ali para estragar a festa, não é?
deixa palavras de encorajamento
mais palmas, mais gritos, às vezes lágrimas de comoção que um zoom desenfreado da câmara se apressa a colher
- Na próxima semana cá estaremos à mesma hora
sorrisos brilhantes de dentes impecáveis, um
- Ciao
prolongado, modulado, as bocas rasgadas de orelha a orelha
sempre tão jovens, tão alegres
estão felizes?
tão comunicativos
estão felizes?
tão simpáticos
estão felizes?
Se calhar estão. O que é que você acha, Monteiro?


Jorge Cunha

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Poesia (4) De passagem

Todos estamos aqui nesta condição.
E o futuro nada mudará.


Jorge Cunha