sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Crónica (2) Tão longe deste vazio de agora

Pago
É um euro e vinte, quer o recibozinho?
tiro o carro do estacionamento, da escuridão subterrânea do estacionamento, cá fora o sol, o vento, algumas árvores
(meio raquíticas mas árvores)
o canal que se estende com reflexos trémulos, a sombra das pontes desenhada na água, uma curva ligeira ao fundo, gente
enquanto a
É um euro e vinte, quer o recibozinho?
definha lá no fundo, nem vento nem sol, sequer uma árvore ainda que raquítica, horas e horas mergulhada num cheiro difuso a escape, numa meia-luz baça, numa rotina baça
É um euro e vinte, quer o recibozinho?
horas infindáveis encafuada numa gaiola, o olhar tão triste
É um euro e vinte, quer o recibozinho?
apesar dos cantos da boca que tentam erguer-se, esboçar um sorriso
É um euro e vinte, quer o recibozinho?
mais triste ainda que o olhar

tão longe o olhar deste vazio de agora.

Sempre tão novas
(aos trinta anos já se é velha)
tão arranjadinhas, tão apresentáveis
Não há cá desleixos
apesar do salário escasso e incerto, o sorriso
(sorriso?)
sempre vigilante
É preciso causar boa impressão
o inevitável Posso ajudar nalguma coisa? sempre engatilhado
os diminutivos sempre à mão
Também temos a t-shirtezinha em verde
dando sempre razão ao cliente
O cliente tem sempre razão
horas intermináveis de pé a arrumar o que os clientes desarrumam, a disfarçar o cansaço com sorrisos em que se adivinham azedumes reprimidos
e de súbito às vezes o olhar
Ao menos o olhar, já que eu não posso
a escapar-se, a partir
Estou aqui mas não estou aqui
a ausentar-se para muito longe
(para onde?)
para muito longe deste vazio de agora
Se eu pudesse ir com o olhar
até quando passar a vida atrás de um balcão
Se puder ajudar nalguma coisa
as pernas que doem, a sola dos pés que se abre
(até quando esta vida?)
lá fora o sol, o vento nas árvores
Não tem em azul? Preferia em azul
cansaço, apesar do cansaço de novo o esforço de um sorriso
Azuizinhas não temos
mais triste ainda que o olhar

tão longe o olhar deste vazio de agora.

Sentar-se um pouco por fim no sofá coçado, esticar as pernas numa lassidão todo o dia ansiada, procurar um escape na televisão
Coisas alegres, chatices já tenho que cheguem
a apresentadora num escarlate decotado
eu num escarlate decotado
fazendo boquinhas de espanto fingido nos píncaros dos saltos altos, derramando uma alegria de plástico
Coisas alegres, chatices já tenho que cheguem
uma boa disposição profissional, enquanto no rodapé
beijinhos para a Cristina e para o Manel
pérolas de uma ternura de pacotilha
Digo ao mundo e a ti que és a minha vida
de um lirismo pandilha que não dispensa a exposição pública
Digo perante todo o país amo-te Andreia
desforrar-se de vez em quando metendo-se nas lojas à procura de trapinhos, estar do outro lado
Agora sou cliente
não ter de derramar simpatias, diminutivos sorridentes
e depois andar bonitinha ajuda a parecer alguém, a esquecer as frustrações, a humilhaçãozinha de ser
(de se sentir?)
menos que os outros
e quem sabe até se um dia
Há-de ser sempre assim a minha vida?
quem sabe se um dia, quem sabe?



Jorge Cunha

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